Brasil pode ficar para trás na corrida da IA, alerta relatório da ONU

Brasil pode ficar para trás na corrida da IA, alerta relatório da ONU

- in Notícias
0
Comentários desativados em Brasil pode ficar para trás na corrida da IA, alerta relatório da ONU

Relatório aponta riscos de dependência tecnológica, déficit de habilidades e infraestrutura precária que podem ampliar desigualdades no mercado jurídico nacional

Reinaldo Rinaldi
12 de Dezembro 11h27

Enquanto grandes escritórios internacionais investem milhões em inteligência artificial para revisão de contratos, pesquisa jurisprudencial e due diligence, o mercado jurídico brasileiro enfrenta um dilema estrutural: adotar tecnologias caras desenvolvidas no exterior ou arriscar perder competitividade global. O alerta vem do relatório The Next Great Divergence, lançado na última semana pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP), que aponta como países sem infraestrutura digital adequada, capital humano qualificado e sistemas de governança podem ampliar desigualdades na era da IA.O documento revela que a região Ásia-Pacífico já concentra mais de 55% dos usuários globais de IA, com a China detendo quase 70% das patentes mundiais na área. Essa concentração tecnológica cria uma dependência perigosa: escritórios em países emergentes, como o Brasil, são forçados a usar ferramentas desenvolvidas sob lógicas jurídicas, idiomas e frameworks regulatórios estrangeiros — frequentemente incompatíveis com o sistema romano-germânico brasileiro e sua realidade socioeconômica. Para especialistas ouvidos por esta reportagem, o cenário demanda atenção urgente, embora as avaliações sobre a gravidade do problema divirjam significativamente.

Diagnóstico dividido sobre o mercado brasileiro

A avaliação sobre o posicionamento do Brasil no cenário global de IA jurídica revela perspectivas contrastantes entre especialistas do setor. De um lado, há quem enxergue atrasos estruturais profundos. De outro, uma visão otimista sobre o protagonismo brasileiro.Alan Campos Thomaz, sócio do Campos Thomaz Advogados, é direto na avaliação: “Vejo o Brasil, e em particular o mercado jurídico brasileiro, muito atrasado em relação à fronteira de uso de IA. A imensa maioria dos escritórios ainda trabalha de forma extremamente arcaica, com baixa digitalização, pouca cultura de dados e quase nenhuma governança tecnológica. Isso cria uma vantagem competitiva relevante para a minoria que tem aptidão para explorar tecnologia a fundo, porque a distância em produtividade e qualidade tende a aumentar.”

Beatriz Haikal, sócia de Proteção de Dados e Inteligência Artificial no BBL Advogados, oferece uma análise mais matizada. “Do ponto de vista macro, eu colocaria o Brasil num patamar intermediário instável”, afirma. Segundo ela, o país possui boa penetração de internet e ilhas de excelência em IA aplicada, mas persistem “gargalos clássicos do Sul Global: desigualdade educacional profunda, baixa escala de formação técnica avançada, dependência de infraestrutura estrangeira de computação e dados, e uma governança de IA ainda titubeante”.

Daniel Marques, presidente da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs (AB2L), apresenta visão diametralmente oposta. “O Brasil hoje é o vale do silício do Direito. É o país com maior diversidade de soluções de tecnologia jurídica do mundo, com relevância concreta no setor público e no privado”, declara. Para Marques, o ecossistema brasileiro deixou de ser periférico e tornou-se referência global, especialmente devido aos dados de justiça abertos disponíveis no país.

A concentração global de tecnologia jurídica

O relatório da UNDP deixa claro que a revolução da Inteligência Artificial não está acontecendo de forma homogênea. Nações asiáticas incluindo China, Japão, Coreia do Sul e Singapura estão bem posicionadas para aproveitar as ferramentas de IA, enquanto países em desenvolvimento carecem de habilidades, energia confiável e outros recursos necessários.No mercado jurídico, essa assimetria se traduz em acesso desigual a tecnologias que já transformam a prática advocatícia globalmente. Grandes bancas americanas e britânicas utilizam sistemas de IA para análise de milhares de documentos em minutos, identificação de precedentes relevantes e até previsão de resultados processuais.

Thomaz ressalta que essas ferramentas estão “treinadas predominantemente com jurisprudência anglo-saxã e estruturadas para sistemas de common law”, o que gera inadequações práticas. “Entre os grandes escritórios e algumas bancas especializadas que estão atentas ao tema, já há investimento consistente em infraestrutura, nuvem, segurança e integração de sistemas”, observa. “Mas a grande maioria do mercado brasileiro ainda está engatinhando. Usa basicamente ferramentas como ChatGPT em regime ad hoc, sem automação real nos fluxos de trabalho.”

Dependência tecnológica e suas implicações

A concentração de patentes de IA em poucos países levanta questões estratégicas complexas para escritórios brasileiros. Beatriz Haikal analisa que o dado sobre 70% das patentes mundiais de IA serem chinesas “revela uma concentração estrutural de poder tecnológico, com efeitos jurídicos diretos sobre quem utiliza essas soluções fora dos centros produtores”.Segundo a advogada, essa dependência gera riscos. “O primeiro risco é a dependência tecnológica propriamente dita, que raramente é tratada com a seriedade necessária no mercado jurídico. Quando a inteligência central da prática passa a operar sobre modelos, atualizações, critérios de segurança e arquiteturas que não são controlados localmente, o escritório perde capacidade de auditar, adaptar e até compreender plenamente o funcionamento da ferramenta que utiliza”, explica.

Thomaz confirma a questão no dia a dia dos escritórios: “Na prática, a grande maioria das soluções de IA que utilizamos e que vemos no mercado são estrangeiras. Ainda há muito pouco desenvolvimento ou customização realmente robusta no Brasil.” Ele aponta que, no caso específico de seu escritório, “hoje não temos qualquer dependência de fornecedores chineses. As soluções que utilizamos são predominantemente de provedores americanos e europeus”, mas reconhece “um risco estrutural de dependência tecnológica de poucos polos globais”.

Marques, por outro lado, vê a concentração chinesa de patentes não como ameaça, mas como lição estratégica. “O erro seria reagir com uma legislação de IA que restringe acesso e desacelere o desenvolvimento de tecnologias nacionais”, argumenta. Para ele, o exemplo chinês demonstra a importância da “integração efetiva entre academia e mercado” e do investimento estatal consistente.

Infraestrutura: além da conectividade básica

O relatório menciona que cerca de um quarto da região Ásia-Pacífico carece de acesso online. No Brasil, embora a conectividade urbana seja melhor — atingindo 89% dos domicílios, segundo a pesquisa TIC Domicílios deste ano —, os desafios de infraestrutura vão além do acesso à internet.Haikal explica que “a maior parte dos escritórios brasileiros tem infraestrutura suficiente apenas para um uso superficial de IA”. Segundo ela, ferramentas baseadas em nuvem e modelos generalistas funcionam razoavelmente, “mas isso não representa ‘infraestrutura de IA’ no sentido do relatório”. A advogada aponta que “poucos escritórios possuem governança robusta de dados, bases internas estruturadas, interoperabilidade entre sistemas, políticas maduras de segurança da informação ou capacidade de validar modelos e outputs de forma contínua”.

Thomaz identifica o custo como obstáculo principal: “O custo é, sem dúvida, o maior impeditivo para a maioria dos escritórios. As melhores ferramentas estão precificadas em moeda estrangeira, o que torna a adoção difícil em larga escala.” Ele acrescenta que “o treinamento de equipe se torna um desafio quando a ferramenta não é suficientemente boa e intuitiva”.

Marques oferece perspectiva mais otimista: “Devido ao acesso a tecnologias cada vez mais acessíveis e democráticas, estamos vivendo uma verdadeira época de ouro da advocacia”, afirma. Segundo ele, novas soluções permitem que “pequenos e grandes escritórios concorram em condições antes restritas aos médios e grandes players”.

Divergência interna entre regiões

A concentração geográfica do acesso qualificado à IA jurídica é ponto de concordância entre os especialistas, embora com nuances diferentes.Thomaz é categórico: “Existe uma divergência interna clara. De forma geral, São Paulo está muito à frente do resto do país em acesso, maturidade e uso de IA, com algumas exceções pontuais em grandes capitais.”

Haikal contextualiza o fenômeno: “Os grandes escritórios paulistas e cariocas lidam diariamente com clientes que já usam IA de forma intensiva em seus próprios negócios, exigem ganhos de eficiência, cobram previsibilidade, métricas e respostas mais rápidas. Esse ambiente força investimento, experimentação e, sobretudo, mudança de mentalidade.” Ela alerta que sem estratégia deliberada, a IA tende a ampliar essa divergência, pois “escritórios em centros já consolidados usam IA para escalar, sofisticar e reduzir custos, enquanto escritórios fora desse eixo tendem a utilizá-la apenas pontualmente”.

Marques discorda da gravidade do problema: “Com o avanço da tecnologia e o acesso à internet, a informação passou a ser amplamente distribuída, independentemente do local”, afirma. Para ele, o desafio atual não é tecnológico, mas de “cultura, modelo de negócio e forma de atuação da advocacia”.

O déficit crítico de habilidades digitais

Um dos pilares destacados pela UNDP para aproveitar oportunidades da IA é o investimento em habilidades. Aqui, o Brasil enfrenta um dos seus maiores desafios reconhecidos por todos os entrevistados.Thomaz oferece visão pragmática sobre a questão: “Entendo que o advogado do futuro precisa, sobretudo, saber destrinchar processos de negócio, mapear fluxos e identificar onde soluções específicas, inclusive IA e automações, podem gerar valor. Não considero necessário que a maioria dos advogados tenha conhecimento técnico profundo sobre como os modelos funcionam por dentro.”

Haikal é mais crítica em relação ao ensino jurídico: “O ensino jurídico no Brasil ainda é majoritariamente dogmático, centrado em memorização normativa, reprodução de doutrina e treino formal de peças. Há pouquíssima exposição a temas como arquitetura de sistemas, funcionamento de modelos algorítmicos, tratamento de dados, riscos técnicos ou mesmo noções básicas de como a tecnologia entra na tomada de decisão contemporânea.”

Marques vai além e sugere transformação radical: “A formação jurídica brasileira não está preparada para o cenário atual. Com o avanço da tecnologia, a tendência é clara: atividades repetitivas perdem centralidade e ganham espaço profissionais que são, de fato, juristas.” Para ele, “quanto mais a tecnologia avança, mais os fundamentos importam. Princípios, teoria e filosofia jurídica tornam-se diferenciais reais.”

Casos práticos de uso de IA

Os escritórios ouvidos por esta reportagem demonstram diferentes níveis de maturidade na adoção de IA, refletindo a diversidade do mercado brasileiro.Thomaz relata uso abrangente: “No nosso caso, usamos IA em praticamente todo o ciclo de relacionamento com o cliente, além da operação administrativa do escritório, em especial nas áreas financeira, de tecnologia da informação e de recursos humanos.”

No BBL Advogados, Haikal descreve abordagem mais estruturada em múltiplas camadas. “Utilizamos IA generativa como ferramenta de apoio cognitivo à prática jurídica. Ela é empregada para pesquisa jurídica ampliada, organização e síntese de grandes volumes de informação, apoio à estruturação inicial de peças, contratos e pareceres”, explica. O escritório também desenvolveu “soluções próprias baseadas em RAG, voltadas principalmente à governança interna e ao acesso estruturado ao conhecimento do próprio escritório”, que operam sobre bases jurídicas curadas, garantindo “rastreabilidade, redução de riscos de alucinação e transforma documentos internos em infraestrutura funcional de decisão”.

Além disso, o BBL passou a trabalhar com a CRIA.AI no desenvolvimento de fluxo automatizado de cadastro de processos, que permite “alimentar sua base interna com dados completos, consistentes e estruturados desde a entrada de cada demanda”. O escritório também oferece produtos baseados em IA, como o legal red teaming, “serviço voltado a testar sistemas e produtos de IA de forma deliberadamente adversarial”.

Erros, vieses e alucinações

A questão dos erros gerados por inteligência artificial é reconhecida por todos os entrevistados como problema real que exige atenção. Thomaz identifica a pesquisa jurídica como área crítica. “É na pesquisa de doutrina e jurisprudência que observo mais erros e alucinações. Não é raro o sistema apresentar decisões que não existem, misturar entendimentos de tribunais diferentes ou resumir de forma imprecisa teses doutrinárias. Por isso, usamos IA como apoio, mas nunca como única fonte de verdade, e mantemos sempre revisão humana criteriosa nessas etapas.”Haikal relata uma experiência semelhante. “Um dos erros mais comuns é a invenção de precedentes judiciais. A IA gera decisões com aparência absolutamente verossímil, indicando tribunal, órgão julgador, número de processo, data e ementa, mas que simplesmente não existem ou não correspondem ao que foi efetivamente decidido.” Ela também menciona “a criação de citações de obras jurídicas inexistentes ou deturpadas” e “invenções ou distorções de normas jurídicas”.

Marques reconhece o problema mas enfatiza soluções: “Viés e inconsistências existem porque a inteligência artificial é, em essência, um modelo estatístico. Já vimos criação de jurisprudências e doutrinas que não existem. Ao utilizar uma Legal AI treinada com os próprios dados do escritório e com dados de justiça, esses riscos são reduzidos de forma relevante.”

O debate regulatório

A discussão sobre o Marco Legal da IA divide opiniões entre os especialistas ouvidos.Thomaz manifesta ceticismo em relação a novas regulações: “De forma geral, considero a tendência regulatória em IA ruim, na medida em que adiciona camadas de burocracia sem necessariamente endereçar os riscos mais relevantes. Já existe um conjunto expressivo de leis que exige mapeamento e mitigação de riscos, inclusive em proteção de dados.”

Haikal oferece uma crítica mais elaborada. “O PL 2338 adota princípios relevantes e alinhados com uma agenda global, como transparência, não discriminação e responsabilização. O problema está menos nos princípios e mais na arquitetura regulatória escolhida.” Ela explica que o projeto “replica uma lógica de classificação de risco e responsabilização pensada para mercados que produzem tecnologia, desenvolvem modelos e possuem elevada capacidade técnica e institucional”, o que não se adequa à realidade brasileira como usuário de tecnologia.

Marques é mais direto. “O marco legal da IA no Brasil acabou se tornando uma colcha de retalhos que, na prática, não protege adequadamente o cidadão nem promove a inovação. Falta foco em princípios práticos e objetivos.” Ele defende que “um modelo mais eficaz é estabelecer diretrizes gerais claras e permitir que a regulação seja setorial, com normas ajustadas à realidade concreta de cada área”.

A divergência em curso

Todos os entrevistados concordam que já existe distanciamento entre escritórios que incorporaram IA e aqueles que permanecem em modelos tradicionais.Thomaz confirma: “Vejo, sim, um distanciamento crescente entre escritórios intensivos em tecnologia e escritórios tradicionais. Quem incorpora automação e IA de forma inteligente ganha competitividade, melhora de maneira significativa a eficiência operacional, aumenta a capacidade de lidar com grandes volumes e melhora a experiência do cliente.”

Haikal contextualiza o fenômeno: “Escritórios tech enabled começam a operar com outra lógica de tempo, custo e previsibilidade. Conseguem mapear riscos mais rapidamente, lidar com volumes grandes de informação sem colapsar a equipe, padronizar análises sem empobrecer o conteúdo e dialogar melhor com áreas de negócio dos clientes.” Sobre a reversibilidade dessa lacuna, ela pondera: “A lacuna é parcialmente reversível, mas não indefinidamente. Quem ainda pode atravessar esse gap é quem começa cedo, de forma estratégica, redesenhando processos, capacitando equipes e criando governança orientativa.”

Marques sintetiza: “Sem tecnologia não há inovação, mas tecnologia sozinha não sustenta transformação. Inovação é o novo mármore. Não será o tamanho do escritório nem a sua história que garantirão sucesso no futuro.”

Projeções para os próximos cinco anos

As visões sobre o futuro do mercado jurídico brasileiro divergem significativamente.Thomaz é realista quanto às limitações: “Sendo realista, acho difícil que, nos próximos cinco anos, o conjunto dos escritórios brasileiros esteja entre os líderes globais em uso de IA no direito. Precisaríamos de uma redução significativa de custos de ferramentas e de câmbio mais favorável, o que foge ao controle do setor jurídico.” Ele identifica, porém, oportunidade específica: “Uma exceção importante é o contencioso de massa, que é praticamente exclusivo do Brasil e oferece enorme campo para desenvolvimento de IA e automação. Neste nicho podemos, sim, produzir soluções de referência.”

Haikal projeta cenário preocupante: “Se nada mudar em cinco anos a maior parte dos escritórios brasileiros estará na periferia do ecossistema global de IA jurídica, consumindo ferramentas estrangeiras como serviço de prateleira, sem protagonismo tecnológico e com pouca capacidade real de auditar, customizar e governar esses sistemas.”

Marques mantém otimismo: “O mercado já está em transformação. Escritórios que compreendem essa nova realidade e conseguem se adaptar, recolocando a inovação e a tecnologia no centro da operação, com o cliente como referência principal, são os que permanecerão relevantes.”

O caminho à frente

O relatório da UNDP é claro: países que investem em habilidades, poder computacional e sistemas sólidos de governança se beneficiarão, outros correm o risco de ficar muito para trás. Para o mercado jurídico brasileiro, evitar essa divergência exige ações coordenadas em múltiplas frentes. O título do relatório — “The Next Great Divergence” — não é alarmismo. É uma projeção baseada em dados sobre como tecnologias disruptivas ampliam desigualdades quando benefícios e riscos são distribuídos de forma desigual. Para o mercado jurídico brasileiro, a escolha é clara: investir agora em capacidade tecnológica própria ou resignar-se a ser cliente perpétuo de soluções estrangeiras, com todas as implicações estratégicas, econômicas e até de soberania que isso representa.A questão central que permanece é se o mercado jurídico brasileiro está disposto a fazer os investimentos necessários, ou se esperará passivamente enquanto a divergência se aprofunda. O relatório da ONU já deu o alerta. A resposta depende de escolhas que estão sendo feitas — ou deixando de ser feitas — neste exato momento.

About the author

You may also like

Parlamento Europeu blinda setor agrícola e define regras para acordo com Mercosul

Por Estadão Conteúdo 16 dez 2025, (Imagem: REUTERS/Wolfgang