Relatório aponta riscos de dependência tecnológica, déficit de habilidades e infraestrutura precária que podem ampliar desigualdades no mercado jurídico nacional
Reinaldo Rinaldi
12 de Dezembro 11h27
Diagnóstico dividido sobre o mercado brasileiro
Beatriz Haikal, sócia de Proteção de Dados e Inteligência Artificial no BBL Advogados, oferece uma análise mais matizada. “Do ponto de vista macro, eu colocaria o Brasil num patamar intermediário instável”, afirma. Segundo ela, o país possui boa penetração de internet e ilhas de excelência em IA aplicada, mas persistem “gargalos clássicos do Sul Global: desigualdade educacional profunda, baixa escala de formação técnica avançada, dependência de infraestrutura estrangeira de computação e dados, e uma governança de IA ainda titubeante”.
Daniel Marques, presidente da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs (AB2L), apresenta visão diametralmente oposta. “O Brasil hoje é o vale do silício do Direito. É o país com maior diversidade de soluções de tecnologia jurídica do mundo, com relevância concreta no setor público e no privado”, declara. Para Marques, o ecossistema brasileiro deixou de ser periférico e tornou-se referência global, especialmente devido aos dados de justiça abertos disponíveis no país.
A concentração global de tecnologia jurídica
Thomaz ressalta que essas ferramentas estão “treinadas predominantemente com jurisprudência anglo-saxã e estruturadas para sistemas de common law”, o que gera inadequações práticas. “Entre os grandes escritórios e algumas bancas especializadas que estão atentas ao tema, já há investimento consistente em infraestrutura, nuvem, segurança e integração de sistemas”, observa. “Mas a grande maioria do mercado brasileiro ainda está engatinhando. Usa basicamente ferramentas como ChatGPT em regime ad hoc, sem automação real nos fluxos de trabalho.”
Dependência tecnológica e suas implicações
Thomaz confirma a questão no dia a dia dos escritórios: “Na prática, a grande maioria das soluções de IA que utilizamos e que vemos no mercado são estrangeiras. Ainda há muito pouco desenvolvimento ou customização realmente robusta no Brasil.” Ele aponta que, no caso específico de seu escritório, “hoje não temos qualquer dependência de fornecedores chineses. As soluções que utilizamos são predominantemente de provedores americanos e europeus”, mas reconhece “um risco estrutural de dependência tecnológica de poucos polos globais”.
Marques, por outro lado, vê a concentração chinesa de patentes não como ameaça, mas como lição estratégica. “O erro seria reagir com uma legislação de IA que restringe acesso e desacelere o desenvolvimento de tecnologias nacionais”, argumenta. Para ele, o exemplo chinês demonstra a importância da “integração efetiva entre academia e mercado” e do investimento estatal consistente.
Infraestrutura: além da conectividade básica
Thomaz identifica o custo como obstáculo principal: “O custo é, sem dúvida, o maior impeditivo para a maioria dos escritórios. As melhores ferramentas estão precificadas em moeda estrangeira, o que torna a adoção difícil em larga escala.” Ele acrescenta que “o treinamento de equipe se torna um desafio quando a ferramenta não é suficientemente boa e intuitiva”.
Marques oferece perspectiva mais otimista: “Devido ao acesso a tecnologias cada vez mais acessíveis e democráticas, estamos vivendo uma verdadeira época de ouro da advocacia”, afirma. Segundo ele, novas soluções permitem que “pequenos e grandes escritórios concorram em condições antes restritas aos médios e grandes players”.
Divergência interna entre regiões
Haikal contextualiza o fenômeno: “Os grandes escritórios paulistas e cariocas lidam diariamente com clientes que já usam IA de forma intensiva em seus próprios negócios, exigem ganhos de eficiência, cobram previsibilidade, métricas e respostas mais rápidas. Esse ambiente força investimento, experimentação e, sobretudo, mudança de mentalidade.” Ela alerta que sem estratégia deliberada, a IA tende a ampliar essa divergência, pois “escritórios em centros já consolidados usam IA para escalar, sofisticar e reduzir custos, enquanto escritórios fora desse eixo tendem a utilizá-la apenas pontualmente”.
Marques discorda da gravidade do problema: “Com o avanço da tecnologia e o acesso à internet, a informação passou a ser amplamente distribuída, independentemente do local”, afirma. Para ele, o desafio atual não é tecnológico, mas de “cultura, modelo de negócio e forma de atuação da advocacia”.
O déficit crítico de habilidades digitais
Haikal é mais crítica em relação ao ensino jurídico: “O ensino jurídico no Brasil ainda é majoritariamente dogmático, centrado em memorização normativa, reprodução de doutrina e treino formal de peças. Há pouquíssima exposição a temas como arquitetura de sistemas, funcionamento de modelos algorítmicos, tratamento de dados, riscos técnicos ou mesmo noções básicas de como a tecnologia entra na tomada de decisão contemporânea.”
Marques vai além e sugere transformação radical: “A formação jurídica brasileira não está preparada para o cenário atual. Com o avanço da tecnologia, a tendência é clara: atividades repetitivas perdem centralidade e ganham espaço profissionais que são, de fato, juristas.” Para ele, “quanto mais a tecnologia avança, mais os fundamentos importam. Princípios, teoria e filosofia jurídica tornam-se diferenciais reais.”
Casos práticos de uso de IA
No BBL Advogados, Haikal descreve abordagem mais estruturada em múltiplas camadas. “Utilizamos IA generativa como ferramenta de apoio cognitivo à prática jurídica. Ela é empregada para pesquisa jurídica ampliada, organização e síntese de grandes volumes de informação, apoio à estruturação inicial de peças, contratos e pareceres”, explica. O escritório também desenvolveu “soluções próprias baseadas em RAG, voltadas principalmente à governança interna e ao acesso estruturado ao conhecimento do próprio escritório”, que operam sobre bases jurídicas curadas, garantindo “rastreabilidade, redução de riscos de alucinação e transforma documentos internos em infraestrutura funcional de decisão”.
Além disso, o BBL passou a trabalhar com a CRIA.AI no desenvolvimento de fluxo automatizado de cadastro de processos, que permite “alimentar sua base interna com dados completos, consistentes e estruturados desde a entrada de cada demanda”. O escritório também oferece produtos baseados em IA, como o legal red teaming, “serviço voltado a testar sistemas e produtos de IA de forma deliberadamente adversarial”.
Erros, vieses e alucinações
Marques reconhece o problema mas enfatiza soluções: “Viés e inconsistências existem porque a inteligência artificial é, em essência, um modelo estatístico. Já vimos criação de jurisprudências e doutrinas que não existem. Ao utilizar uma Legal AI treinada com os próprios dados do escritório e com dados de justiça, esses riscos são reduzidos de forma relevante.”
O debate regulatório
Haikal oferece uma crítica mais elaborada. “O PL 2338 adota princípios relevantes e alinhados com uma agenda global, como transparência, não discriminação e responsabilização. O problema está menos nos princípios e mais na arquitetura regulatória escolhida.” Ela explica que o projeto “replica uma lógica de classificação de risco e responsabilização pensada para mercados que produzem tecnologia, desenvolvem modelos e possuem elevada capacidade técnica e institucional”, o que não se adequa à realidade brasileira como usuário de tecnologia.
Marques é mais direto. “O marco legal da IA no Brasil acabou se tornando uma colcha de retalhos que, na prática, não protege adequadamente o cidadão nem promove a inovação. Falta foco em princípios práticos e objetivos.” Ele defende que “um modelo mais eficaz é estabelecer diretrizes gerais claras e permitir que a regulação seja setorial, com normas ajustadas à realidade concreta de cada área”.
A divergência em curso
Haikal contextualiza o fenômeno: “Escritórios tech enabled começam a operar com outra lógica de tempo, custo e previsibilidade. Conseguem mapear riscos mais rapidamente, lidar com volumes grandes de informação sem colapsar a equipe, padronizar análises sem empobrecer o conteúdo e dialogar melhor com áreas de negócio dos clientes.” Sobre a reversibilidade dessa lacuna, ela pondera: “A lacuna é parcialmente reversível, mas não indefinidamente. Quem ainda pode atravessar esse gap é quem começa cedo, de forma estratégica, redesenhando processos, capacitando equipes e criando governança orientativa.”
Marques sintetiza: “Sem tecnologia não há inovação, mas tecnologia sozinha não sustenta transformação. Inovação é o novo mármore. Não será o tamanho do escritório nem a sua história que garantirão sucesso no futuro.”
Projeções para os próximos cinco anos
Haikal projeta cenário preocupante: “Se nada mudar em cinco anos a maior parte dos escritórios brasileiros estará na periferia do ecossistema global de IA jurídica, consumindo ferramentas estrangeiras como serviço de prateleira, sem protagonismo tecnológico e com pouca capacidade real de auditar, customizar e governar esses sistemas.”
Marques mantém otimismo: “O mercado já está em transformação. Escritórios que compreendem essa nova realidade e conseguem se adaptar, recolocando a inovação e a tecnologia no centro da operação, com o cliente como referência principal, são os que permanecerão relevantes.”



