Por que o monarca precisa de uma coroação?

Por que o monarca precisa de uma coroação?

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Rei Charles 3°

CRÉDITO,GETTY IMAGES

  • Author,Lauren Potts
  • Role,Da BBC News

A coroação do rei Charles 3º no sábado (6/5) provavelmente mostrará o tipo de pompa real pela qual os britânicos são famosos. Mas também é uma ocasião profundamente religiosa, repleta de tradições seculares que, para alguns, podem parecer anacrônicas em 2023.

O evento mantém hoje o significado que já teve no passado e é preciso haver uma cerimônia de coroação?

Milhões de pessoas em todo o Reino Unido testemunharão um evento raro nos próximos dias. Embora os britânicos possam estar acostumados com a pompa, multidões e festas de rua que acompanham as celebrações e jubileus reais, já se passaram 70 anos desde que foi vista uma coroação.

Trata-se de um evento totalmente diferente, repleto de curiosidades: um juramento medieval, óleo sagrado derramado em uma colher do século 12 e uma cadeira de 700 anos que abriga uma pedra que supostamente rugiu quando reconheceu o monarca legítimo.

Alguns especialistas comparam uma coroação a um casamento — mas em vez de um cônjuge, o monarca está se casando com o Estado. As 2 mil pessoas que assistirão à coroação do rei Charles 3º na Abadia de Westminster serão questionadas se o reconhecem como monarca. Ele então receberá um anel de coroação e será chamado a fazer um juramento.

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Se tudo isso soa como algo de outra época, é porque as cerimônias de coroação no Reino Unido mudaram pouco nos últimos mil anos.

Por lei, não há necessidade da coroação, pois o monarca assume o trono automaticamente após a morte de seu antecessor. Mas as coroações são um gesto simbólico que formalizam o compromisso do monarca com o papel, explica George Gross, que lidera um projeto de pesquisa sobre coroações no Kings College London.

Ele acredita que as promessas que um monarca faz de “defender a lei e a justiça com misericórdia” em uma declaração pública são um momento único e especial.

“Em um mundo incerto onde os líderes quebram as regras internacionais da lei o tempo todo, nosso monarca tem que dizer ‘essas são as coisas fundamentais que importam’, e isso não me incomoda.”

Coronation spoon

CRÉDITO,UNIVERSAL HISTORY ARCHIVE/GETTY IMAGES

Legenda da foto,A colher da coroação foi registrada pela primeira vez em 1349 entre as regalias de St Edward na Abadia de Westminster, quando já era considerada “antiga”

Juntando o velho e o novo?

O que acontece em seguida talvez resuma o que é a coroação: uma ocasião fundamentalmente religiosa. Um contorno da cruz é feito na cabeça, nas mãos e no peito do monarca com um óleo consagrado, na colher medieval.

O processo de unção eleva “o monarca quase a um padre”, explica Gross, e sinaliza o papel do monarca como chefe da igreja.

“É uma cerimônia anglicana e a unção é essencial para isso como a concessão da graça de Deus ao monarca”, diz David Torrance, que escreveu um trabalho de pesquisa parlamentar sobre coroações.

“Mas também é a Igreja da Inglaterra lembrando a todos que eles são uma das igrejas estabelecidas do Reino Unido e o monarca é seu governador supremo”.

Este momento é feito em privado porque é visto como um momento íntimo e por razões de praticidade, já que o monarca usa menos roupas neste momento, diz Elena Woodacre, diretora da Royal Studies Network. É provável que as câmeras se movam como fizeram quando a rainha Elizabeth foi despojada de seu manto e joias durante sua coroação televisionada em 1953.

Rainha Elizabeth 2ª sentada em trono sob dossel

CRÉDITO,KEYSTONE / GETTY IMAGES

Legenda da foto,Um dossel foi colocado sobre a rainha antes que ela fosse ungida em sua coroação em 1953

Em vez de usar o óleo da coroação anterior — como alguns monarcas fizeram — um novo lote foi feito este ano. Anteriormente continha produtos de origem animal como óleo de civeta e âmbar, encontrado em baleias cachalotes, mas esta versão vegana e sem crueldade é feita, em parte, de azeitonas. Em um possível aceno para outras religiões, foram cultivadas no Mosteiro de Maria Madalena em Jerusalém, onde a princesa Alice, avó do rei, está enterrada.

Mas a escolha do óleo também está de acordo com “sensibilidades modernas”, diz Woodacre, acrescentando que “mistura tradição e continuidade com adaptação e mudança” num momento em que alguns questionam se a monarquia ainda tem lugar.

“A coroação é a chance do rei se conectar ao poder do passado e moldar seu futuro. Todas essas tradições antigas, como a Abadia e o uso da colher, ajudam a reforçar sua posição.”

Consagração do óleo da coroação

CRÉDITO,PATRIARCHATE OF JERUSALEM AND BUCKINGHAM PALACE

Legenda da foto,O óleo para a coroação deste ano foi feito de azeitonas cultivadas em Jerusalém

A tradição importa?

Graham Smith, do grupo Republic, que faz campanha para um chefe de Estado eleito, questiona se a tradição é um argumento válido quando as coroações “mudaram em escala, escopo e conteúdo todas as vezes”.

“A maioria das pessoas não consegue se lembrar da última vez, então não é uma tradição que signifique nada para alguém”, diz ele. “Não tem valor constitucional, não é obrigatório e, se não fizéssemos (a cerimônia), Charles ainda assim seria rei.”

De fato, um monarca não precisa de uma coroação para governar e alguns fizeram isso, como Eduardo 8º, que abdicou antes da coroação dele. As monarquias europeias se livraram das coroações há muito tempo e a opinião pública sugere que o interesse talvez esteja diminuindo no Reino Unido.

Uma pesquisa recente do YouGov apontou que 48% dos entrevistados não eram muito ou nada propensos a assistir à coroação. Outra pesquisa, realizada na época do jubileu de platina da rainha, apontou que, enquanto seis em cada dez apoiavam a monarquia, a maioria dos britânicos sentia que a família real era menos importante para o país do que em 1952.

Multidões foram às ruas enquanto o carro fúnebre da Rainha passa

CRÉDITO,GETTY/SOPA IMAGES

Legenda da foto,Milhares foram às ruas de Londres no dia do funeral da rainha

Stephen Evans, que comanda a National Secular Society, diz que o cenário religioso do Reino Unido, por exemplo, “mudou além de qualquer reconhecimento” desde a última coroação em 1953 e “muitos se sentirão alienados por uma cerimônia anglicana”.

Torrance concorda que os aspectos centrais da cerimônia podem ter sido familiares para as pessoas naquela época e talvez sejam menos familiares agora. Mas ele diz que as estatísticas mostram que as congregações em Londres estão aumentando e muitas igrejas anglicanas estão cheias.

“Quando a rainha morreu, tivemos muita religião misturada com cerimônia. Acho que o Palácio ficou surpreso com a resposta do público… muita atenção prestada”, diz ele. “Se houver um esforço para tornar a coroação menos exclusivamente anglicana, pode ser levado em consideração que o Reino Unido agora tem uma proliferação de diferentes religiões”.

Uma coroação do século 21?

Parte essencial da cerimônia, no entanto, está ligada a uma fé, diz a professora Anna Whitelock, diretora do Centro de Estudos da Monarquia Moderna.

“O problema é que no centro disso está a unção [e] o juramento que trata de defender a Igreja da Inglaterra. O fato é que você não pode mudar as partes fundamentais da coroação, que é exclusiva, não é diversa, é sobre privilégio e tudo o que uma Grã Bretanha multi-religiosa e multi-étnica não é.”

Whitelock concorda que foram feitas tentativas de modernizar a coroação, como torná-la menor em comparação com a anterior, encomendar novas músicas e envolver diversos convidados, “mas é uma tentativa de mudar o estilo [quando] você não pode mudar a substância”.

Ela avalia que qualquer mudança significativa exigiria uma grande revisão, como a desestabilização da Igreja da Inglaterra ou um referendo sobre a monarquia, nenhum dos quais ela espera ver tão cedo.

“A legitimidade da monarquia é baseada na tradição e na continuidade, então acho que se o príncipe William acabasse com a coroação, isso seria visto como ir além e enfraqueceria a instituição, e não acho que chegamos a esse ponto ainda.”

Charles at the state opening of parliament in 2022

CRÉDITO,WPA POOL

Legenda da foto,Estima-se que a lista de convidados da coroação será de cerca de 2 mil pessoas, em comparação aos 8 mil que compareceram à da rainha

Gross acredita que há tentativas de modernizar a coroação de outras formas, inclusive na questão do custo.

Ele diz que, embora não seja incomum que as coroações aconteçam em tempos economicamente difíceis – citando a de George 6º, que ocorreu durante uma grande depressão -, a decisão de reduzir a lista de convidados do rei Charles 3º para um quarto dos números que compareceram à de sua mãe pode ser uma tentativa do palácio de manter os custos “razoáveis”.

Mas em um momento em que a população está com dificuldades financeiras, os críticos dizem que uma coroação que custa milhões é um desperdício público de dinheiro. O Departamento de Cultura, Mídia e Esporte não foi capaz de fornecer estimativas, mas claramente não será gratuito. Também não foi possível revelar quanto custou o funeral de Estado da rainha no ano passado, embora, para comparação, o da rainha-mãe em 2002 tenha custado 5,4 milhões de libras (mais de R$ 33 milhões em cotação atual).

A reação pública à morte de ambos, no entanto, sugere que ainda existe algum nível de interesse na monarquia.

Estima-se que 250 mil pessoas fizeram fila em setembro para ver a rainha e números semelhantes compareceram para ver sua mãe. Em relação à população do Reino Unido, de 67 milhões, isso pode parecer baixo, mas cerca de 40% assistiram ao funeral na TV.

Ainda não se sabe se a coroação terá o mesmo efeito, embora o professor Whitelock seja cético.

“Não há dúvida de que algumas pessoas vão assistir e dizer que é o que a Grã-Bretanha faz de melhor com pompa e ostentação. Mas é ruim a ideia de que um homem que, por acidente de nascimento, está sendo ungido e colocado acima do resto de nós, sem ser eleito, e não representa a Grã Bretanha religiosamente ou etnicamente.”

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