Da agenda da pobreza e clima para a agenda da guerra

Da agenda da pobreza e clima para a agenda da guerra

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Valor Econômico, 16 de janeiro de 2025
Post de Jorge Arbache
A Agenda de Desenvolvimento Sustentável foi adotada pelos Estados-membros da ONU em 2015 durante a Cúpula que tratou do tema. Dezessete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) foram concebidos para orientar os esforços globais até 2030, com vistas a promover o equilíbrio entre crescimento econômico, inclusão social e proteção ambiental.
Fruto de um processo amplo de negociação e participação, a chamada Agenda 2030 foi considerada a manifestação mais significativa do multilateralismo desde a criação da ONU. Estruturada em cinco pilares — erradicação da pobreza, combate às mudanças climáticas, promoção da prosperidade para todos, promoção de sociedades justas e pacíficas e promoção de parcerias globais — a Agenda requer a mobilização de vultosos recursos financeiros, tecnológicos e humanos, além de parcerias público-privadas e ampla cooperação internacional. Muitas grandes empresas, investidores, bancos, seguradoras e fundos de investimento comprometeram-se formalmente com aqueles objetivos em iniciativas sem precedentes.
Contudo, governos de países ricos têm argumentado que a emergência climática e os eventos naturais extremos cada vez mais frequentes requerem a priorização de ações em torno do clima, como mitigação de emissões e transição energética. O setor privado, ator fundamental no financiamento das ações, também tem demonstrado maior interesse em projetos relacionados ao clima devido aos retornos financeiros mais tangíveis e atrativos. Por outro lado, iniciativas que afetam mais diretamente a pobreza, a educação ou a saúde, por exemplo, têm recebido menos atenção. Embora, em teoria, os ODS e a agenda climática sejam complementares, na prática, essa sinergia tem se mostrado limitada.
Embora não se possa afirmar que a agenda climática esteja “atropelando” os ODS, é evidente que a emergência climática reconfigurou as prioridades dos países desenvolvidos. Na prática, o que se nota é que países ricos e grandes empresas estão modulando o seu engajamento na Agenda 2030 de acordo com interesses políticos e econômicos.
Países desenvolvidos prometeram mobilizar até US$ 300 bilhões anuais para ajudar na mitigação e adaptação às mudanças climáticas nos países em desenvolvimento. No entanto, esse montante é amplamente considerado insuficiente. Afinal, alcançar os ODS exigiria recursos anuais entre US$ 5 e 7 trilhões, segundo estimativas da ONU.
A falta de financiamento tem intensificado críticas de países em desenvolvimento, que argumentam que a agenda climática reflete os interesses das nações ricas, que são, historicamente, os maiores emissores de gases de efeito estufa, enquanto desafios imediatos dos países pobres são negligenciados.
Mais recentemente, porém, uma outra agenda está ganhando crescente atenção dos países desenvolvidos: a defesa. Tensões geopolíticas e conflitos internacionais estão reconfigurando as prioridades, redirecionando recursos originalmente destinados à agenda climática e aos ODS para gastos militares e investimentos em tecnologias militares avançadas. Em 2023, os gastos globais com defesa alcançaram US$ 2,4 trilhões, um recorde histórico.
A disputa por influência política e econômica entre EUA e Europa de um lado, e China de outro, também estaria exercendo influência significativa nessa repriorização. E, paradoxalmente, a agenda do clima estaria diretamente envolvida nesta tensão. Isto porque a liderança da China em cadeias de valor e tecnologias críticas para as mudanças climáticas, como energias solar e eólica, hidrolisadores, baterias, carros elétricos, terras raras, dentre outros, é vista pelo ocidente como uma grande ameaça. Afinal, quanto mais avançar a economia do clima, mais se consolidará a liderança econômica chinesa. Por isto, políticos e estrategistas ocidentais consideram que, para conter o avanço da China, poderá ser necessário desacelerar, mesmo que temporariamente, a agenda do clima.
Na União Europeia, o compromisso com o Pacto Verde Europeu tem sido impactado pelo aumento dos gastos militares, o que já está afetando iniciativas climáticas e sociais. Fundos de assistência oficial ao desenvolvimento têm sido desviados para apoiar países aliados e para explorar recursos naturais críticos em países em desenvolvimento, como minerais essenciais para a transição energética e para fins bélicos.
Essa repriorização também é evidente na crescente militarização da agenda climática. Multibilionárias infraestruturas militares resilientes ao clima e o uso de energias renováveis em bases militares estão entre as áreas que estão recebendo atenção, mas esses gastos não beneficiam comunidades civis ou atendem aos ODS. Não por acaso, organizações ambientais internacionais têm identificado e denunciado cada vez mais práticas de greenwashing e socialwashing de países desenvolvidos. Dados da OCDE sugerem que os países ricos, que já não vinham cumprindo seus compromissos de financiamento climático e social, deverão reduzir ainda mais o engajamento com a Agenda de Desenvolvimento Sustentável nos próximos anos. E para engrossar ainda mais o caldo, lobbies da indústria de combustíveis fósseis têm pressionado governos, bancos e empresas a reverem seus compromissos climáticos.
A maré parece estar mesmo virando. Muitos países desenvolvidos já estão revisando compromissos com metas climáticas, dilatando prazos e flexibilizando normas, enquanto investidores e grandes bancos e empresas estão abandonando compromissos com a sustentabilidade. Para muitos, esses movimentos são considerados um prenúncio do fim da Agenda de Desenvolvimento Sustentável — algo impensável há poucos anos.
Para assegurar a Agenda 2030 e para mitigar o desvio de recursos para a agenda de defesa, será necessário fortalecer mecanismos e instituições multilaterais, evitar a militarização de temas relacionados ao clima e a recursos naturais, aumentar a transparência e melhorar a governança orçamentária, além de promover educação e engajamento público com esses temas. Sem ações coordenadas, o redirecionamento de recursos agravará vulnerabilidades climáticas, desigualdades e tensões sociais, ameaçando ainda mais a segurança global e os avanços do desenvolvimento sustentável.
Em menos de uma década, testemunhamos uma transição alarmante: estamos nos movendo da mais ambiciosa agenda multilateral da história para uma agenda de fragmentação e guerra. Evitar o colapso da visão de futuro coletivo exigirá esforços conjuntos e um compromisso renovado com os princípios da solidariedade, proteção ambiental e cooperação internacional.
Jorge Arbache é professor de economia da Universidade de Brasília e escreve mensalmente às quintas feiras neste espaço.

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