O que o Chile tem a ensinar ao Brasil sobre a reforma da Previdência?

O que o Chile tem a ensinar ao Brasil sobre a reforma da Previdência?

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Um dos modelos elogiados pelos bolsonaristas, o sistema de capitalização individual chileno tem sido alvo frequente de críticas pelas distorções provocadas e por acentuar desigualdades

Onyx Lorenzoni e Paulo Guedes

(Valter Campanato/Agência Brasil)

 

SÃO PAULO – Um dos grandes desafios a serem enfrentados pelo presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) logo no início de sua gestão é a implementação de modificações no atual sistema previdenciário, que chegou ao rombo de R$ 268,8 bilhões no ano passado, considerando os resultados do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) e do regime dos servidores públicos da União. A medida é vista por especialistas como necessária para sanear as contas públicas do país. 

Até o momento sinais contraditórios foram dados sobre o conteúdo da proposta, assim como a estratégia de operação política no Congresso Nacional. Na semana passada, Bolsonaro disse que deverá enviar a pauta fatiada ao parlamento e que a tendência seria começar as alterações pela idade mínima para aposentadoria. Nos bastidores, já se cogitou, inclusive, aproveitar o texto de autoria do governo Michel Temer, que tramita na Câmara. A ideia perdeu força com a avaliação de que seria manobra arriscada demais e incapaz de resolver os problemas.

Futuro ministro da Economia, Paulo Guedes tem defendido a aprovação imediata de medidas que resolvam o déficit estrutural, com a adoção de idade mínima para homens e mulheres e equiparação dos regimes geral e próprio. Em um segundo momento, sua meta é substituir o atual modelo de repartição (no qual os trabalhadores ativos bancam a aposentadoria dos inativos) por um modelo de capitalização (em que cada um contribui para sua própria aposentadoria). Conforme pontuam os defensores da medida, além de garantir sustentabilidade ao sistema previdenciário no longo prazo, a capitalização gera poupança, que pode acarretar em investimentos para impulsionar a economia.

Um dos modelos estudados pelos bolsonaristas é o implementado pelo Chile em 1981, durante a ditadura de Augusto Pinochet. O caminho é visto com bons olhos por Onyx Lorenzoni (DEM-RS), futuro ministro-chefe da Casa Civil.

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“Isso é algo que a equipe sempre defendeu, um regime de capitalização (…) que permita que a sociedade brasileira possa se equiparar, talvez em 7 ou 8 anos, ao Chile, por exemplo. O Chile, com seu regime de capitalização, sustenta o crescimento chileno. Os especialistas dizem, nós temos hoje em torno de 15,5%, perto de 16% do PIB de poupança interna. Se nós chegarmos a 19% ou 20%, o Brasil tem crescimento sustentável, com recursos próprios, de 3% ao ano, me média. Imagina, se o Brasil cresce uma década 3% ao ano, é emprego sobrando”, defendeu em encontro com empresários.

Apesar dos elogios do futuro governo brasileiro, o sistema de capitalização individual tem sido alvo frequente de críticas no Chile. Hoje em dia, o país se vê às voltas com contrarreformas em busca de corrigir distorções e oferecer um modelo mais solidário para as aposentadorias.

Andras_Uthoff

O professor chileno Andras Uthoff esteve em São Paulo para participar de seminário sobre a reforma previdenciária no Brasil e as lições do modelo chileno. 

Para o economista Andras Uthoff (foto), consultor internacional e conselheiro regional da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e professor da Faculdade de Economia e Negócios da Universidade do Chile, a promessa de que o sistema geraria poupança suficiente para impulsionar a economia e garantir empregos de qualidade fracassou. Ele lembra que, atualmente, mesmo com a reforma promovida no governo de Michelle Bachelet, 79% das pensões estão abaixo do salário mínimo.

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O especialista esteve em São Paulo, há duas semanas, para participar de seminário promovido por Crivelli Advogados Associados, sobre a reforma previdenciária no Brasil e as lições do modelo chileno. Em entrevista ao InfoMoney, ele aprofundou suas impressões sobre os dilemas enfrentados pelos dois países:

InfoMoney – Como se estruturou o modelo chileno de capitalização para a Previdência?
Andras Uthoff – O sistema de capitalização originou-se em 1981, quando um grupo de economistas vinculados à Universidade de Chicago implementou uma organização de tipo neoliberal para a economia. Em matéria de proteção social, um deles, José Piñera, então ministro do Trabalho, defendia a eliminação do que era a seguridade social pública e sua transformação em um mercado de poupança obrigatória e individual no Chile.

Os trabalhadores passaram a ser afiliados a um sistema de seguridade e ser consumidores de uma indústria de serviços financeiros que eram basicamente oferecidos por administradoras de fundos de pensão. Criaram-se 12 AFPs, que logo chegaram a 21 e hoje em dia são seis. Paralelamente, o Estado teve que fechar o sistema público, o que significou assumir a dívida. Foi um alto custo de transição, que se estimou em 130% do PIB, em valor presente.

No caso brasileiro, estimamos em mais de 200% do PIB. Como estávamos em ditadura, isso se ajustou reduzindo gastos de saúde, educação e moradia, aumentando um pouco a dívida e subindo alguns impostos, coisa que se fez sem nenhum debate parlamentar. É um sacrifício muito grande que em democracias é difícil realizar.

IM – Como o sistema passou a funcionar na prática?
AU – A totalidade do dinheiro dos afiliados ia ao mercado financeiro sem que o Estado fizesse uso dos recursos para pagar a dívida. O modelo dizia que essa estratégia geraria poupança significativa, que seria investida nas empresas e, como os empresários não teriam que pagar pela previdência e o custo da mão de obra seria barato, todo mundo teria um bom emprego.

Mas a realidade resultou distinta. As administradoras começaram a investir, mas não em investimentos reais no país. Hoje, metade dos ativos financeiros de propriedade dos trabalhadores está investida em instrumentos financeiros no exterior. O mercado de trabalho chileno continua sendo precário, com alta informalidade, rotatividade e necessidade de empreender. Isso fez com que a maioria não tivesse condições de contribuir de forma permanente durante os 40 anos de vida ativa. Quando foi feita a primeira reforma de [Michelle] Bachelet, em 2008, o diagnóstico era que metade dos adultos mais velhos estavam sem nenhuma previdência.

Depois disso, o Estado passou a prestar assistência aos idosos mais pobres (a partir dos 65 anos). Criou-se uma pensão básica solidária a quem não havia poupado nada e um aporte provisório, complementar, a quem havia poupado algo. Mas os aportes são muito pequenos e o nível das prestações são insuficientes. Hoje, mesmo com a ajuda, 79% das pensões no Chile estão abaixo do salário mínimo (US$ 420), e 44% estão abaixo da linha da pobreza. O sistema acabava empobrecendo toda a classe média quando se aposentava.

IM – Quais seriam os principais equívocos que o senhor apontaria?
AU – O mercado de trabalho não foi inclusivo como prometeram, e, como consequência, as pessoas não têm condições de poupar. Quem poupa não o faz com regularidade suficiente e a taxa é muito baixa. Os retornos entregues pelas AFPs foram muito altos no começo (acima de 10% reais), mas diminuíram e hoje em dia estão em 4% reais. Quando os trabalhadores chegam à idade de se aposentar, a única opção que têm é comprar uma renda vitalícia, e lhes dizem que a expectativa de vida aumentou, o que torna a poupança insuficiente para financiar uma boa prestação.

IM – Uma das preocupações no debate sobre migração de sistema previdenciário é o custo da transição. Como foi no caso chileno?
AU – A soma dos gastos operacionais (pagamento dos aposentados pelo regime antigo) com o bônus de reconhecimento (pagamento dos contribuintes do sistema antigo que migraram para a capitalização) representou 130% do PIB a valor presente. Naquele momento, significou gastar de 4 a 5 pontos do PIB. Isso continuamos pagando agora.

Acontece que, no momento em que o custo de transição diminui, o governo se dá conta que o sistema não cobre com suficiência a todos. Em consequência, precisa começar a melhorar as garantias que vai dar à população para sobreviver na velhice. Ao final, voltamos à mesma situação da qual partimos, em que o Estado precisa contribuir para um sistema de pensões independentemente se for capitalização ou de seguridade social.

IM – Como o senhor observa a regulação das AFPs nesse contexto?
AU – As empresas foram estritamente reguladas, mas trata-se de uma regulação de tipo prudencial, que significa que não lhes permite investir em ativos financeiros que sejam muito arriscados. O que isso significou? Que no Chile, e em geral no mundo inteiro, custa encontrar instrumentos que sejam pouco arriscados, mas que tenham um impacto real na economia. Todos os países precisam investir nas pequenas e médias empresas, mas há poucos instrumentos seguros para fazê-lo. Faltam, em general, na América Latina, instrumentos que permitam à intermediação financeira chegar às necessidades de investimentos reais. O resultado é que, no caso chileno, 40% do dinheiro está investido em dívidas no exterior, com muito pouco impacto real no país.

IM – Uma das propostas que ganhou força recentemente no Brasil foi apresentada pelos economistas Arminio Fraga e Paulo Tafner. Trata-se de um modelo que combina um grau mínimo de assistência, repartição e capitalização como complemento. Qual é a sua opinião a respeito?
AU – É onde quisemos chegar no Chile: uma base de nível significativo com direitos cidadãos à toda a população adulta mais velha; um sistema de seguridade social muito solidário para levar esse patamar a certo nível de suficiência; e, como complemento, voluntário ou obrigatório, o sistema de capitalização individual. Mas partimos do inverso e o que observamos é que não construímos o nível mínimo de subsistência para todos os cidadãos e destruímos o sistema de seguridade social solidário. Temos que criar esse sistema multipilar, que é o que existe na maior parte do mundo. Se é isso que vai ser feito, é uma aproximação que segue as tendências internacionais, mas é necessário discutir qual é o tamanho de cada pilar.

IM – As mudanças no mercado de trabalho, com empregos que deixam de existir, a robotização e até mesmo a informalidade e as terceirizações também atingem a saúde dos sistemas previdenciário. Quais são suas preocupações nesse sentido e como lidar com essa nova realidade?
AU – É um tema essencial. Creio que no mundo inteiro a proteção social baseada no mercado de trabalho, em que o mercado de trabalho gera empregos para que o trabalhador possa contribuir, é uma promessa que não se cumpriu e vai ser cada vez mais débil. Estamos vivendo com uma crescente informalidade, mecanização, robotização, automação, que cada vez vamos ter menos empregos dependentes, estáveis, com capacidade de contribuir.

Isso significa uma inflexão da proteção social que ocorre no mundo inteiro. Temos que nos colocar de acordo sobre o que podemos fazer dada essa situação. É uma reprodução de desigualdades, o mercado de trabalho não é inclusivo. Por outro lado, a iniquidade significa que há riqueza que se gera e isso passa por qual reforma tributária precisamos fazer para ter os recursos e poder implementar um sistema de solidariedade. Essas garantias significam gastos permanentes, é preciso ver de onde retirar os recursos. Isso implica discutir, junto com a reforma previdenciária, uma boa reforma tributária.

IM – Uma das grandes críticas ao modelo chileno foi o que se entende como excesso de poder nas mãos das AFPs. Qual é o papel que esses grupos exercem sobre o processo político local? Como eles interferem em decisões de políticas públicas?
AU – Essas administradoras de fundos de pensão terminam vinculadas com grandes grupos financeiros nacionais e internacionais. E esses grupos manejam um monte de recursos da economia de forma direta ou indireta, também com poder no exterior. O que observamos na situação chilena são dois fenômenos: 1) grande parte da elite profissional que pode pensar em um modelo diferente termina cooptada por essas indústrias; 2) grande parte dos parlamentares financiaram suas candidaturas com recursos destas empresas. Há uma cooptação de políticos e da elite profissional significativa, e é necessária uma visão objetiva para isso.

O que está acontecendo é que a cidadania está começando a reagir frente a esses feitos. Uma de suas principais manifestações é o grupo No+AFP, que conseguiu colocar mais de um milhão de pessoas nas ruas. Essa pressão obriga agentes políticos e a elite profissional a mudarem seu pensamento.

IM – Quais modelos internacionais o senhor destacaria como referências de solidez, sustentabilidade e solidariedade, apesar das peculiaridades de cada país em termos de demografia, cultura, economia?
AU – Estive observando a evolução que tiveram os sistemas de previdência na OCDE. Ao contrário do que se diz, não estão revolucionando em direção ao sistema de capitalização individual, mas fazendo um sistema público cada vez mais solvente, com reformas paramétricas, e implementando três tipos de pensões: assistenciais, mínimas e básicas. O que fazem é construir muito bem uma cobertura para a maioria dos adultos mais velhos a níveis de suficiência acertados pela sociedade, e, depois, como complemento, uma possibilidade de poupança individual voluntária ou obrigatória.

IM – Como criar um modelo que garanta a canalização dos recursos das contribuições previdenciárias em investimentos na economia real?
AU – Há uma deficiência entre o que é o financiamento do desenvolvimento e o que se pode chamar de desenvolvimento financeiro – ou seja, o que o mercado precisa fazer para que o esforço dos trabalhadores possa ser canalizado para projetos de investimentos reais. Precisamos criar instrumentos financeiros com respaldo em investimentos reais que sirvam ao país, mas que sejam suficientemente seguros em matéria de rentabilidade e risco. Não há ninguém fazendo isso. É um trabalho que deveriam fazer os bancos de desenvolvimento.

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